20 março 2006

Guerra é guerra

Não faz muito tempo, li um artigo, acho que numa revista americana, a respeito da necessidade, ou mesmo indispensabilidade, da hipocrisia para a existência humana como a conhecemos. Não vou entrar em detalhes, mas há assuntos ou ocasiões em que somos quase obrigados, às vezes até para não ofender, humilhar ou causar um mal maior, a usar bastante hipocrisia. Outras vezes ainda, somos hipócritas a contragosto, em função de uma conveniência social. Mas também há a hipocrisia safada, movida por baixos interesses e insuportavelmente farisaica, praticada por gente de ares respeitabilíssimos e sem papas na língua ao criticar o comportamento alheio. A hipocrisia assume então sua face mais odiosa e desprezível.

Temos visto bastante hipocrisia na vida pública nacional (aliás, falar nisso, não é bem hipocrisia, mas circula um vídeo velho na Internet em que o dr. Serra diz que assume o compromisso de governar a cidade de São Paulo e não se afastará do cargo para habilitar-se a outras posições, tais como a presidência da República — será por isso que deu Alkmin?) e vemos como é uma arma política de grande eficácia. Em muitos casos, o político tem sua vida consideravelmente prejudicada, se não emprega criteriosamente a hipocrisia.

Foi esse o erro de Severino, além do nome, da aparência e do sotaque de milhões de outros brasileiros, vistos como exóticos e incomodativos por grande parte de seus compatriotas. Ele não enganava nem enganou ninguém. Descrevia o Congresso e a política nacional exatamente como eles são e não os gabava com a caudalosa grandiloqüência de outros, estes, sim, hipócritas até a medula. Ouso até crer que, se votando, por corporativismo ou “porque é uma besteira”, contra a cassação de um deputado comprovadamente culpado, ele não teria problema em justificar seu voto para quem quisesse ouvir.

— É um bom rapaz, muito direito, muito bom pai de família, muito bom parlamentar, meu amigo pessoal e não é ladrão como tem uma porção aí, tanto na Câmara como no Senado, como no Executivo, como no Judiciário. Pegou essa mixaria, que não compra nem cem gramas de fumo de rolo, porque estava necessitado para a campanha, ele não rouba e não tinha dinheiro para a campanha. É um homem direito, a quem até eu devo obséquios. Eu vou votar contra um rapaz como esse?

Lembro ainda o presidente da República, num acesso de que aparentemente já se libertou, violando as regras da mais elementar hipocrisia política, ao dizer que o caixa dois é sistemático neste país. Mais tarde, festejou os companheiros alegadamente (ou qualquer outro advérbio que o departamento jurídico do jornal julgue adequado, tenho terror de processo) envolvidos em esquemas ilícitos e classificou os supostos (idem quanto ao departamento jurídico) delitos de meros “erros”. Ou seja, tanto para ele quanto para seus trezentos picaretas, tudo o que aconteceu está dentro da normalidade e bestas somos nós, que pensamos que não era bem assim — afinal, onde vivemos?

Agora estamos assistindo a outra demonstração de hipocrisia. O Estado do Rio de Janeiro finge que não está praticamente sob intervenção federal, o governo federal também. E o Exército finge que não perdeu a primeira batalha e teve de selecionar diversos eufemismos para dizer que estava saindo de mãos abanando, pois a missão “passem os fuzis para cá e tá todo mundo em cana” fracassou, pois os fuzis parecem mais devolvidos que capturados, como se o recado fosse de que a atrapalhação nos negócios provocada pela ocupação não valesse uns meros fuzis que eles obtêm de qualquer forma por outros meios. O Estado continua a não exercer sua soberania em diversas áreas do Rio de Janeiro e, sem hipocrisia, vamos reconhecer que o suposto pessoal do tráfico não se intimidou como talvez alguém esperasse, mas atirou na direção dos soldados e curtiu com a cara da força de ocupação.

Só que, desta vez, vejo um problema adicional. O Exército e as Forças Armadas em geral já se queixam há muito de sucateamento. Um oficial da reserva me disse que corria na tropa a informação de que os coletes à prova de bala usados no Haiti estão vencidos. Não sei se é verdade, mas tenho certeza de que o clima no Exército, já talvez de moral meio baixo, é ver um episódio desmoralizante nessa história toda. Acredito que o governo pense da mesma forma, nem que seja para solidarizar-se com os militares, pois, se não os equipa, pelo menos que os apóie numa situação delicada.

Há também o grande número de cidadãos do Rio de Janeiro que defende a permanência do Exército nas ruas. Não adianta dizer que Exército não é polícia e que o treinamento de um oficial da Polícia Militar é diferente da preparação de um oficial do Exército. Repetindo o que eu já disse aqui, a cabeça de um oficial do Exército, quando confrontado com uma situação como as dos morros cariocas, segue um curso que vai do bombardeio de artilharia e aéreo para posterior ocupação por infantaria, preferivelmente blindada. Guerra é guerra e milico é treinado para guerrear, não para policiar. Além disso, vamos reconhecer que alguns de nós estão se lixando para os favelados e pouco se incomodando com as condições em que vivem. Portanto, um bombardeiozinho lá neles seria chato, mas traria sossego para quem mora aqui embaixo. Raciociniozinho calhorda, mas freqüentador da cabeça de muita gente, a maior parte sem coragem de expressá-lo em voz alta (hipocrisia).

Para mim, contudo, essa guerra está apenas começando. Tenho certeza de que a posição oficial é de que o Exército não pode ser desmoralizado. Tenho certeza também de que essa retirada está sendo vista como uma derrota, não importam quantos nomes formosos se arranjem para ela. Fico torcendo para não ter razão e acho mesmo que, depois daqui, vou telefonar para algum amigo que me faça mudar de idéia. Mas tremo só em pensar no dia em que, nas “operações pontuais”, houver as primeiras baixas entre os soldados.


Texto retirado da coluna de João Ubaldo Ribeiro, de " O Globo"

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